21 junho 2021

O melro

O melro, eu conheci-o.
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar d’entre o arvoredo
Verdadeiras risadas de crista.
E assim que o padre cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro d’entre a horta
Dizia-lhe: “Bons dias!”
E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortezias.

O cura era um velho conservado,
Malicioso, alegre, prasenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro,
Livre de reumatismo,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente,
Até ultimamente
O velho disse um dia:
“Nada, já não tem geito! Este ladrão
Dá cabo dos trigaes!
Qual seria a razão
Por que Deus os melros e os pardaes?!”

E o melro no entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara
Já elle andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formigão mais pequeno insecto.
E apezar disto o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu um augmento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!
(…)
Abílio Guerra Junqueiro in Primores da Poesia Portugueza - 1924
(Livraria Quaresma - Editora - Rio de Janeiro)

18 junho 2020

Catilina

Eu sou o solitário e nunca minto.
Rasguei toda a vaidade tira a tira
E caminho sem medo e sem mentira
À luz crepuscular do meu instinto.

De tudo desligado, livre sinto
Cada coisa vibrar como uma lira,
Eu - coisa sem nome em que respira
Toda a inquietação dum deus extinto.

Sou a seta lançada em pleno espaço
E tenho de cumprir o meu impulso,
Sou aquele que venho e logo passo.

E o coração batendo no meu pulso
Despedaçou a forma do meu braço
Pr’além do nó de angústia mais convulso.

Sophia de Mello Breyner Andresen in Dia do Mar

01 junho 2020

A casa do Mar

A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro, os nevoeiros imóveis, o arfar ressonante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos, onde tudo se abre e vibra. A casa é construída de pedra e cal, e a sua frente está virada para o mar. No andar de cima da fachada, há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo, há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas de verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra, que separa a casa das areias da duna. Para além das dunas, a praia estende-se a todo o comprimento da costa, e só o limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturadas com ouriços, pedaços de cortiça e pedaços de madeira, que são restos de boças e barcos. Sobre a areia molhada, que a maré cheia alisou, o poisar das gaivotas deixa finas pegadas triangulares, semelhantes à escrita de um tempo antiquíssimo. As traseiras da casa dão para um jardim inculto e rude e áspero, onde o vento que dobra os arbustos se precipita e dança em volta do poço redondo. O chão está coberto de pequenas pedras soltas, que rangem e saltam sob os passos. Presa num arame, a roupa lavada a secar ao sol estala e palpita, como as velas de um navio. A norte, a leste e a sul, o jardim é limitado por três muros toscos, feitos de calhaus de granito, sem reboco. No muro do fundo, que dá para a rua deserta onde os plátanos sonham devagar a própria sombra, há uma cancela, que continuamente bate e gira e geme ao vento.
(...)
Sophia de Mello Breyner Andresen in Histórias da Terra e do Mar

09 janeiro 2020

O Grande Gatsby

“A cerca de meio caminho entre West Egg e Nova Iorque, a auto-estrada aproxima-se bruscamente da via férrea e corre junto dela por quatrocentos metros, como se quisesse evadir-se de uma certa área desolada: um vale de cinzas, espécie de herdade fantástica, onde em vez de trigo crescem escórias, formando cristas e montículos e grotescos jardins, tomando formas de casas e chaminés e de fumos que sobem, e por fim, num esforço transcendente, as de homens grisalhos que se movem turvamente, e já em desintegração, através do ar empoeirado. Ocasionalmente, um cortejo de carros rasteja ao longo do invisível trilho, solta um rangido dilaceraste e detém-se: logo em seguida os homens de cinza surgem no enxame, armados de pás de chumbo e, com as suas obscuras manobras, levantam impenetrável nuvem que os esconde por completo nossa vista.”

F. Scott Fritzgerald in O Grande Gatsby

02 novembro 2019

Execução Inútil

Dos vários disparos, um cumpre a finalidade.

O alvo humano, que era livre e móvel, cai. Arrasta-se pelo asfalto. Outro tiro. Nova dor. O alvo se contorce, ainda respira.
Mais um tiro. E mais um.

O alvo, agora imóvel, pela força do que é certo se liberta. Suas ideias sobrevivem em outro alvo, livre e móvel, que se multiplica em outros tantos renascidos da verdade.

Impossível acertá-los todos. Inútil insistir, senhores.

O alcance da arma é a queda aparente. Nenhum tiro vai além.
Nenhum.

Francisco Azevedo in eusoueles 






19 julho 2019

A História de ARQUITAS

(…)
Platão bateu à porta, pediu para entrar. Trazia um livro, escondido. Entregou-o a Arquitas, o Hospitaleiro. Este recebeu os dois: o livro, com a forma desse tempo, e o sábio.
O livro era Margites, a comédia escrita por Homero.
- É o único exemplar - disse Platão -, entrego-to. Guarda-o como guardas a tua filha: com a vida!
Não explicou a razão de tanto segredo; não explicou a razão para não divulgar o livro mais procurado, a terceira obra-prima de Homero. Disse apenas:
- Não sou capaz de destruir o belo, mas não posso difundir. O belo corrompe o justo.

- Que não morra - disse ainda - , mas que não se multiplique. Que não se multiplique, mas que não morra!

Arquitas era exemplar na hospitalidade: não fez perguntas.
Guardou o livro no cofre, disse a Platão para descansar, ofereceu-lhe cama.
- Defenderei o livro como defendo a minha filha: só o darei a um homem. Antes procurava um grande homem agora procurarei dois. Escolherei um marido para uma mulher e um sábio para o livro.
Platão, depois de algum silêncio, murmurou:
- Se escolheres para marido da tua filha um sábio, entrega-lhe o livro. Um homem protege melhor dois tesouros do que um. Com mais responsabilidade fica mais forte.
Arquitas concordou (sem palavras) e deitaram-se cedo nessa noite.
Na outra manhã, Platão partiu e logo durante a tarde ouviram-se os cavalos dos bárbaros.
- Eles vêm à procura de tesouros! - gritava o povo, aterrorizado.
Arquitas era ingénuo. Confundia o seu ouro com o dos outros.
(…)

Gonçalo M. Tavares in Histórias Falsas

16 março 2019

name you

daughter,
i will name my heart
after you.
both having been born
in the body,
both being my
dug deep roots.
my grace givers.
oxygen providers.
safe keepers.

i would not exist without you.

ans so i name it after all
that you are
and
will be,
little one.

i name it: resilient.
i name it: courageous.
i name it: fearless.

i name it: love.

Alison Malee in The Day is Ready for You

11 novembro 2018

Fale Apenas com uma Boa Finalidade

"Dá-se muita atenção à importância moral das nossas acções e dos seus efeitos. Os que procuram viver uma vida mais elevada passam também a compreender o poder moral das nossas palavras, tantas vezes esquecido.

Um dos sinais distintivos mais claros da vida moral é o discurso correcto. O aperfeiçoamento do nosso discurso é um dos princípios básicos de um programa espiritual autêntico.
Antes de mais nada, pense antes de falar para ter a certeza que fala com uma finalidade. O falatório vazio é um desrespeito perante os outros. A exposição inconsequente da sua intimidade é um desrespeito perante você mesmo. Inúmeras pessoas sentem-se impelidas a exteriorizar cada sensação, pensamento ou impressão passageira. Despejam ao acaso o conteúdo das suas mentes sem fazer caso das consequências. Isso é prática e moralmente perigoso. Se tagarelarmos sobre cada ideia que nos ocorre, seja pequena ou grande, corremos o risco de desperdiçar ideias que têm real valor no meio de um fluxo de trivialidades de uma conversa vazia.
O falar irreprimido é como um veículo descontrolado desviando-se de um lado para  o outro até caír numa vala.

Se for preciso, mantenha-se sobretudo em silêncio ou fale com moderação. O falar, em si, não é bom nem mau, mas o falar descuidado é tão comum que é necessário estar atento. Uma conversa frívola é uma conversa prejudicial. Além disso é indelicado ser uma pessoa tagarela.
participe de discussões quando s ocasiões sociais e profissionais o exigirem, mas cuide para que o espírito e o intento da discussão, assim como o conteúdo, mantenham o seu valor. A conversa fiada é uma actividade sedutora. Não se deixe envolver por ela.

Não é necessário limitar-se a assuntos elevados ou filosofar todo o tempo, mas fique atento para que o falatório comum não seja considerado uma discussão de alto nível. Nestes casos pode ter um efeito corrosivo no objectivo superior que escolheu. Quando falamos sobre frivolidades, a nossa atenção fica tomada por elas, tornando-nos frívolos. Tornamo-nos naquilo a que damos atenção.

Tornamo-nos mesquinhos quando nos envolvemos em conversas a respeito de outras pessoas. De modo especial, evite acusar, elogiar ou comparar pessoas.
Tente, sempre que possível, quando perceber que a conversa em torno de si descai para falatório fútil, trazer subtilmente a conversa de volta para assuntos mais construtivos. Se, contudo, estiver cercado por estranhos indiferentes, pode simplesmente manter-se calado.
Seja uma pessoa bem-humorada e não dispense uma gargalhada quando for caso disso, mas evite o tipo de riso desenfreado que se houve em salões de bar e que degenera facilmente em vulgaridade ou malevolência. Ria com, mas nunca ria de.
Se puder, evite sempre fazer promessas frívolas."

Epicteto in "A Arte de Saber Viver"

30 setembro 2018

Livro I - Júpiter e Io

(…)

Há um bosque num vale na Hemónia, que uma floresta
cortada a pique fecha de todos os lados: chama-se Tempe.
Por ele irrompe, de espumosas ondas, o Peneu, que brota
do sopé do Pinho. Pelo peso da sua queda, projecta névoas
de vapores ténues e em borrifos chuvisca sobre os cimos
do arvoredo, e o fragor molesta bem para lá da vizinhança.
esta é a casa, esta é a sede, este é o santuário do grande rio.
Residindo aqui, em gruta talhada nas fragas, estabelecia
as leis para as ondas e às ninfas que nas ondas habitam.
A este lugar chegaram primeiro os rios daquela região,
sem saber se deviam vir felicitar o pai ou confortá-lo:
Esperqueu, carregado de choupos, o irrequieto Enipeu,
o velho Apídano, e o tranquilo Anfriso, e o Eante;
depois, outros rios, que, por onde o ímpeto os empurra,
levam lá abaixo ao mar as águas, exaustas das errâncias.
Só Ínaco está ausente. Recolhido no fundo da sua gruta,
engrossa as águas com o pranto: digno de dó, chora Io,
a sua filha, como se perdida. Não se sabe se ainda está viva,
se está entre os Manes.Não a achando em parte alguma,
julga que já não vive mais, e receia o pior no seu coração.
(…)
Ovídeo in Metamorfoses

06 abril 2018

"Passaram três dias, três dos habituais dias imemoráveis, tão compridos, ao passar, e tão curtos depois de passados, e já todos se tinham cansado de acreditar no exame de química.

O Kommando estava reduzido a doze homens: três tinham desaparecido da forma habitual daquele lugar, talvez na barraca ao lado, talvez apagados do mundo. Dos doze, cinco não eram químicos; todos eles tinham imediatamente pedido a Alex para voltar aos seus Kommandos anteriores. Não evitaram as pancadas, mas inesperadamente, e por não se sabe qual autoridade, foi decidido que ficassem, agregados na qualidade de auxiliares ao Kommando Químico.
Alex apareceu na cave de Cloreto de Magnésio e mandou-nos sair os sete, para irmos fazer o exame. E nós, como sete pintos desengonçados atrás de uma galinha, vamos atrás de Alex pela pequena escada Polymerisations-Buro. Estamos no patamar; na porta uma tabuleta com os três nomes famosos. Alex bate respeitosamente, tira o boné, entra: ouve-se uma voz calma; Alex volta a saír: - Rube, jetz. Warten - Esperem em silêncio.

Esperar agrada-nos. Enquanto se espera, o tempo avança sem sobressaltos sem termos de intervir para o fazer avançar, pelo contrário, quando se trabalha cada minuto percorre-nos com fadiga e tem de ser expulso com muito esforço. Por isso é sempre agradável esperar durante horas com a completa e obtusa inércia das aranhas nas velhas teias.

Alex está nervoso, anda para trás e para diante, e nós desviamo-nos todas as vezes, para o deixar passar. Também, cada um a seu modo, estamos inquietos; apenas Mendi não está. Mendi é rabino; provém da Rússia subcarpática, daquele emaranhado de povos em que cada um fala pelo menos três línguas, e Mendi fala sete. Sabe muitíssimas coisas, para além de rabino, é sionista militante, glotólogo, foi resistente e é doutorado em Jurisprudência; não é químico, mas quer tentar igualmente, é um pequeno homem tenaz, corajoso e arguto.
Bália tem um lápis e os outros não o largam. Não temos a certeza de sermos ainda capazes de escrever, queríamos experimentar. 

Kohlenwasserstoffe, Massenwirkungsgesetz. Vêm-me à memória os nomes alemães dos compostos e das leis: estou grato ao meu cérebro, deixei de me preocupar com ele, porém ainda me serve muito bem.
Chega Alex. Eu sou químico, que tenho a ver com este Alex ?”

Primo Levi in Se Isto é um Homem

20 março 2018

Morte Heróica

Fancioulle era um cómico admirável e quase um dos amigos do Príncipe. Mas, para as pessoas que se dedicam por necessidade à comédia, as coisas sérias têm atracções fatais. Embora possa parecer estranho que as ideias de pátria e de liberdade se apoderem despoticamente do cérebro de um histrião, Fancioulle participou, um dia, de uma conspiração tramada por certos fidalgos descontentes. Em toda parte existem homens de bem para denunciar ao poder os indivíduos de temperamento atrabiliário que queiram depor os príncipes e operar, sem consultá-la, a transformação da sociedade. Os referidos senhores foram presos juntamente com Fancioulle e condenados à morte.

Tenho a impressão de que o Príncipe experimentou algum desgosto ao descobrir seu comediante favorito entre os rebeldes. O Príncipe não era melhor nem pior do que os outros príncipes, mas uma excessiva sensibilidade tornava-o, muitas vezes, mais cruel e mais despótico do que todos os seus semelhantes. Amante apaixonado e excelente conhecedor das belas-artes, era verdadeiramente insaciável de volúpias. Bastante indiferente relativamente aos homens e à moral, verdadeiro artista, não conhecia inimigo mais perigoso do que o Tédio, e os esforços extraordinários que fazia para evitar ou vencer esse tirano do mundo lhe teriam certamente atraído, da parte de um historiador severo, o epíteto de “monstro”, caso permitisse que, nos seus domínios, se escrevesse qualquer coisa que não visasse unicamente ao prazer ou à admiração, que é uma das formas mais delicadas do prazer.

A grande infelicidade do Príncipe foi que jamais encontrou teatro bastante vasto para o seu génio. Há jovens Neros que sufocam em limites demasiado estreitos, e os séculos vindouros ignorarão sempre o seu nome e boa-vontade. A imprevidente Providência dera àquele faculdades maiores do que os seus Estados. Inesperadamente, correu a notícia de que o soberano desejava conceder graça a todos os conjurados. A origem do boato foi o anúncio de um grande espectáculo em que Fancioulle devia desempenhar um dos seus principais e melhores papéis.

Dizia-se que ao espectáculo assistiriam os fidalgos condenados, o que era sinal evidente, acrescentavam os espíritos superficiais, das tendências generosas do Príncipe ofendido. Da parte de um homem tão natural e voluntariamente excêntrico, tudo era possível, inclusive a virtude e a clemência, sobretudo se pudesse esperar e descobrir nisso prazeres desconhecidos. Mas, para os que, como eu, tinham podido penetrar mais além nas profundezas daquela alma curiosa e doente, era infinitamente mais provável que o Príncipe quisesse julgar do valor dos talentos cênicos de um homem condenado à morte.

Pretenderia ele aproveitar a ocasião para fazer uma experiência fisiológica de capital interesse e verificar até que ponto as faculdades habituais de um artista podiam ser alteradas ou modificadas pela situação extraordinária em que se encontrasse? Existiria em sua alma alguma intenção mais ou menos determinada de clemência? É um ponto que nunca pôde ser esclarecido.

Por fim, chegado o grande dia, a pequena corte apresentou-se com toda a pompa, sendo difícil conceber, sem ter visto, tudo o que a classe privilegiada de um pequeno Estado, de recursos restritos, pode mostrar de esplendores para uma verdadeira solenidade. E aquela era duplamente verdadeira, primeiro pela magia do luxo ostentado, e depois pelo interesse moral e misterioso que lhe estava ligado. O senhor Fancioulle primava sobretudo nos papéis mudos ou pouco carregados de palavras, que são quase sempre os principais nesses dramas feéricos cujo objecto é representar simbolicamente o mistério da vida.

Entrou em cena rapidamente e com perfeito desembaraço, o que contribuiu para fortificar, no nobre público, a ideia de doçura e de perdão. Quando se diz que um comediante “é um bom comediante”, a gente serve-se de uma fórmula que significa que, sob a personagem, se deixa ainda adivinhar o comediante, isto é, a arte, o esforço, a vontade. Ora, se um comediante chegasse a ser, relativamente à personagem que está encarregado de exprimir, o que as melhores estátuas da antiguidade, miraculosamente animadas, vivas, insinuantes, vistosas, seriam relativamente à ideia geral e confusa de beleza, tratar-se ia, sem dúvida, de um caso singular e de todo imprevisto. Fancioulle foi, naquela noite, uma idealização perfeita, que não se podia deixar de supor viva, possível, real. O cômico ia, vinha, ria, chorava, convulsionava-se, com uma indestrutível auréola em torno da cabeça, auréola invisível para todos, mas visível para mim, e na qual se misturavam, num amálgama estranho, os raios da Arte e a glória do Martírio.

Fancioulle, não sei com que graça peculiar, introduzia o divino e o sobrenatural até nas mais extravagantes palhaçadas. Treme-me a pena e lágrimas de uma emoção sempre presente sobem-me aos olhos ao procurar descrever aquela noite inolvidável. Fancioulle provava-me, de maneira peremptória, irrefutável, que a embriaguez da Arte é mais adequada do que qualquer outra para velar os terrores do abismo; que o gênio pode representar a comédia à beira do túmulo com uma alegria que o impede de ver o túmulo, perdido como está num paraíso que exclui toda ideia de túmulo e destruição.

Todo aquele público, embotado e frívolo como podia ser, sofreu logo o domínio todo-poderoso do artista. Ninguém mais pensava em morte, em luto, em suplícios. Todos se abandonavam, sem inquietação, às volúpias multiplicadas pela visão de uma obra-prima de arte viva. As explosões de alegria e de admiração abalaram por várias vezes a abóbada do edifício, com a energia de uma tempestade contínua. Até o Príncipe, inebriado, juntou seus aplausos aos da corte. No entanto, para um observador perspicaz, sua embriaguez não existia sem mistura. Sentir-se ia vencido no seu poder despótico? humilhado em sua arte de terrificar os corações e entorpecer os espíritos? frustrado em suas esperanças e escarnecido em suas previsões?

Tais hipóteses, que não se justificam exactamente, mas que não são em absoluto injustificáveis, atravessaram-me o espírito ao contemplar o rosto do Príncipe, no qual uma palidez nova ia aumentando sem cessar a palidez habitual, como neve juntando-se à neve. Seus lábios apertavam-se cada vez mais e os olhos acendiam-se com um fogo interior semelhante ao da inveja e do ressentimento, mesmo quando aplaudia de modo ostensivo os talentos do velho amigo, o estranho bufão que zombava da morte.

A um certo momento, eu vi Sua Alteza voltar-se para um pequeno pajem, que se achava atrás dele, e falar-lhe ao ouvido. A fisionomia maliciosa do belo menino iluminou-se com um sorriso, e assim abandonou ele, apressado, o camarote do Príncipe, como para desincumbir-se de urgente missão. Alguns minutos mais tarde, um assobio agudo, prolongado, interrompeu Fancioulle num dos seus melhores momentos, ferindo a um tempo os ouvidos e os corações. E do lugar da sala de onde partira a inesperada vaia, um menino precipitou-se num corredor sufocando o riso. Fancioulle, sacudido, despertado em seu sonho, fechou primeiro os olhos, depois tornou a abri-los quase em seguida, desmesuradamente arregalados, abriu a boca como para respirar convulsivamente, cambaleou, um pouco para a frente, um pouco para trás, e caiu morto no palco.

O assobio, rápido como um gládio, teria realmente frustrado o carrasco? Teria o Príncipe adivinhado toda a homicida eficiência da cilada? É lícito duvidar. Teria ele lastimado o seu querido e inimitável Fancioulle? É agradável e legítimo acreditá-lo. Os fidalgos culpados gozaram pela última vez do espectáculo da comédia. Na mesma noite, foram riscados da vida. Desde então, vários cómicos, justamente apreciados em diversos países, têm ido representar diante da corte de... Nenhum deles, porém, pôde evocar os maravilhosos talentos de Fancioulle, nem elevar-se ao mesmo favor.

Charles Baudelaire in Pequenos Poemas em Prosa

01 março 2018

JOB

Havia um homem chamado Job, que vivia na terra de Uce. Era um homem bom e honesto, muito religioso e não fazia nada de mal.
Job tinha sete filhos e três filhas e possuía muitos rebanhos: sete mil ovelhas e três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas burras. Tinha ainda um grande número de serviçais. Ele era, de facto, o homem mais rico entre todos os do Oriente.
Os seus filhos costumavam reunir-se, uma vez em casa de cada um dos irmãos, para fazerem banquetes, e convidavam também as suas três irmãs, para irem aos banquetes com eles.
Mas todas as vezes que eles faziam uma festa, Job mandava-os chamar, passados aqueles dias, e pedia-lhes que se preparassem convenientemente.
No outro dia, levantava-se cedo e oferecia animais em sacrifício, em nome de cada um deles. De facto, Job pensava consigo: "Pode acontecer que os meus filhos tenham cometido qualquer falta, ofendendo a Deus por um mau pensamento". E assim fazia Job de todas as vezes que eles se reuniam.

Certo dia em que todos os seres celestes se apresentavam diante do Senhor, o acusador Satã encontrava-se igualmente lá com eles. O Senhor perguntou a Satã: "Donde vens agora?" Ele respondeu:"Fui passear e dar umas voltas pela terra". Então o Senhor perguntou-lhe: "Não reparaste no meu servo Job? Não há outro como ele no mundo! É um homem bom e honesto, muito religioso e não faz nada de mal!"
Satã respondeu ao Senhor:"Achas que os seus sentimentos religiosos são desinteressados? Não é verdade que, tal como uma cerca, tu o proteges de todos os lados, a ele, à sua família e a tudo o que lhe pertence? Não é verdade que abençoaste todos os seus trabalhos, de tal modo que os seus rebanhos cresceram enormemente por todo o país? Mas experimenta levantar a mão contra aquilo que é seu e verás se ele não te amaldiçoa mesmo na tua frente".
O Senhor disse a Satã: "Tudo o que lhe pertence está à tua disposição mas nele mesmo não podes tocar".
Depois disto Satã retirou-se de junto do Senhor.

A Bíblia

29 janeiro 2018

Olisipo

(…)
”Fortuna que neste caso também se encarregara de os bafejar com um bonito dia de sol e boa vista, que se abria à sua frente à medida que subiam pelo largo rio acima até ao fundeadouro onde iriam ancorar. A luz da manhã começava a iluminar bonitas praias que se estendiam ao longo de várias milhas, pontilhadas por pequenas aldeias de pescadores e emolduradas por suaves colinas verdes onde se podiam ver pequenas vilas pertencentes à elite da cidade. Não era uma terra plana, esta, mas ondulada, como se as ondas do mares estendessem pela costa adentro e abraçassem toda a terra que conseguissem antes de voltarem para trás, puxadas pelo eterno movimento que Nepturno lhes concedera.

As águas do estuário eram brilhantes e límpidas, deixando ver grandes cardumes de pequenos peixes prateados que certamente faziam as delícias dos locais e que em breve seriam também apanhados pelas redes que o mestre lançaria ao mar.

Para além da proa os cascos e mastros de muitas embarcações preenchiam a paisagem. Todas pareciam flutuar na neblina que calor ia fazendo sair do rio e sobre todas reinava a mesma paz que em breve seria corrompida pelos ritos dos mestres e capitães e pelo começar de mais um dia”.(…)

Inês Ribeiro & Raquel Policarpo in Segredos de Lisboa

08 janeiro 2018

O Alienista


Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, activo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratar-los. Neste ponto, todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Iraguahy. Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto.

Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto: e não ia logo às doses máximas: graduava-as conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos, a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo.

Simão Bacamarte começava a desesperar da cura quando teve a ideia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndero.
- Foi santo remédio! - contava a mãe do infeliz a uma comadre. - Foi um santo remédio!
Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas não sendo escritor (mal sabia assinar o nome) não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguahy.

Machado de Assis in “O Alienista"

06 novembro 2017

Um Sábado

Um homem cego numa casa oca
Vai esgotando alguns rumos limitados
E toca nas paredes que se alargam
E nos vidros das portas interiores
E nas lombadas ásperas dos livros
Vedados ao seu gosto e na apagada
Baixela que já foi dos seus avós
E nas torneiras de água e nas molduras
E em vagas moedas e na chave.
Está sózinho e não há ninguém no espelho.
Ir e vir. Essa mão roça o rebordo
De uma primeira estante. Sem ter querido,
Já se estendeu na cama solitária
E sente que esses actos que executa
Interminavelmente ao crepúsculo
Obedecem a um jogo que não sabe,
Regido por um deus indecifrável.
Em voz alta e ritmada então repete
Fragmentos dos clássicos e ensaia
Variações de verbos e adjectivos
E bem ou mal escreve este poema.

Jorge Luis Borges in Obras Completas 1975-1985

10 julho 2017

Um Senhor muito Velho com umas Asas Enormes

(…) O anjo era o único que não participava no seu próprio acontecimento. Passava o tempo a procurar ocupação no seu ninho de empréstimo, aturdido com o calor do inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam à cerca. A princípio tentaram que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava-os, como desprezou sem os provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer apenas papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural era a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando era debicado pelas galinhas em busca dos parasitas estelares que lhe proliferavam nas asas e os paralíticos lhe arrancavam penas para tocarem com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, testando que se levantasse para o verem de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbar-lo foi quando lhe abrasaram as costas com um ferro de marcar novilhos porque estava imóvel havia tentas horas que o julgaram morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e abriu e fechou as asas um par de vezes, o que provocou um remoinho de esterco no galinheiro e pó lunar, e uma ventania de pânico que não parecia deste mundo. Embora muitos acreditassem que a sua reacção não fora de raiva mas de dor, desde então procuraram não o incomodar, porque a maioria entendeu que a sua passividade não era a de um herói retirado mas a de um cataclismo em repouso. (…)

Gabriel García Marques in Contos Completos 1947-1992

17 junho 2017

Em Defesa da Poesia

A poesia, como tem sido dito, difere, neste respeito, da lógica, na medida em que não está sujeita ao controle das forças activas do espírito, e em que o seu nascimento e recorrência não possuem uma conexão necessária com o inconsciente ou a vontade. É presunção determinar que estas são condições necessárias de toda a causação mental, verificada a insusceptibilidade de se lhes referir os efeitos mentais. A frequente recorrência do poder poético - é evidente supor-se - pode produzir no espírito um hábito de ordem e harmonia correlativo com a sua própria natureza e seus efeitos nos espíritos. 

Mas, nos intervalos da inspiração - e estes podem ser frequentes sem que sejam duradoiros - o poeta torna-se um homem vulgar e fica abandonado ao súbito refluxo das influências, sob as quais os outros habitualmente vivem. Mas como ele é mais delicadamente organizado do que os outros homens, e sensível à dor e ao prazer - seus e dos outros - num grau que a estes é desconhecido, ele evitará uma e perseguirá o outro, com um ardor proporcional a esta diferença. E ele expor-se-à à calúnia, se deixar de observar as circunstâncias sob as quais estes objectos de perseguição e fuga universais se disfarçam com as indumentárias de cada um deles. (...)

Pensei ser mais favorável à causa da verdade registar estas observações conforme a ordem em que me acudiram à mente, considerando o tema, em vez de observar a formalidade de uma réplica polemística; mas, a ser justo o asserto nelas contido, verificar-se-á envolverem uma refutação aos detractores da poesia, pelo menos no que se refere à primeira parte do assunto. (...)

Shelley in Defesa da Poesia

06 junho 2017

The German Submarines

As soon as the German submarines appeared in the Strait between Key West and the Cuban Capital, the "invisibles" had the task of "persuading" the writer to finish his counter-intelligence activities and engage in the quixotic enterprise of pursuing Germans on board his yacht Pilar.
For this purpose, Hemingway initiates a strict antisubmarine training, with weapons given to him by the secret service of United States Navy; and the Crook Factory became immediately Operation Friendless.

For this new challenge, the novelist recruits a select group of friends, ready to stay at sea for months, in a mission extremely reckless: to locate a submarine on the surface, draw it toward the match, and with machine guns and grenades submit its crew, before proceeding to occupy the documentation that surely they brought, so as to contribute in this way to the anti-German counter-offensive that was being spread in the most varied seas of the world.

As in all wears, the events would not wait. In the night of March 12, 1942, very near to Romano, the Germans destroyed two merchant chips:the tanker Texán and the cargo ship Olga. They were sunk between Lobo Lighthouse and Key Confites. Both ships confidently navigated, when they were attacked at the zone known as "the narrowness". There, by night, it is possible to observe the clearness of both lighthouses from one and the other sides of the Channel, at a distance of scarcely twelve miles.

Enrique Circules in The Unknown Hemingway

31 maio 2017

O real nunca existiu

(…)
Nietzsche tem razão em opor o trabalho da memória ao do orgulho, isto é: as lógicas da história (que inquietam) às loucuras da paixão (que tranquilizam). Este conflito entre o sangue-frio daquilo que ocorreu e o sangue quente daquilo que poderia ser, esse combate entre o que é a virtualidade, essa luta entre a modéstia do real e a arrogância das ideias, entre a imanência epicurista e o inteligível platónico, entre o “sentido da terra” nietzschiano e o trancendentalismo kantiano, essa dialéctica produz, com efeito, infinitas contorções que engendram a denegação.
A denegação cresce como uma flor do Mal no estrume de um orgulho imoderado: julgamo-nos grandes, fortes, belos, imaginamo-nos poderosos, importantes, virtuosos; mas somos o contrário: pequenos, fracos, feios, impotentes, zé-ninguéns, ridículos, desconhecidos, ignorados, viciosos. Presumimo-nos e consideramo-nos princesa, generosa, magnânima, benevolente, sensível, humanitária, altruísta; somos fada má, interesseira, egoísta, mesquinha, insignificante, má, ciumenta. A memória diz: “fada má”; o orgulho afirma: “princesa”… A memória cede; o orgulho triunfa. Tudo o que revela a baixeza desaparece e não ocorreu; tudo o que revelaria a beleza e que não ocorreu torna-se verdade de substituição: o mundo do denegador é um mundo de substituição, um universo em que aquilo que não se conseguiu ser deixa o lugar ao que se teria querido ser e que passa a ser o verdadeiro…
(…)

Michel Onfray in O Princípio de Dom Quixote

23 maio 2017

O real nunca existiu

"O que me agrada no livro de Cervantes é que este é o grande romance da denegação: de facto, Dom Quixote é permanentemente o homem para quem o real não tem cabimento. O mecanismo da denegação não é explicitado, nem sequer autopsiado, mas surge constantemente num número inacreditável de situações. A famosa imagem de um fidalgo lutando contra moinhos que teima em considerar gigantes cola-se à pele da personagem e exprime nitidamente o mal de que padece, a sua loucura: ele não quer ver o que é, preferindo ver o que quer. O mundo tal como é não lhe convém e substituiu-o por um mundo tal como deveria ser - por outras palavras, obedecendo aos seus caprichos, às suas fantasias…Nesta operação de substituição do ser pelo dever ser reside o mecanismo da denegação (…)"

Não vale a pena dizer a D. Quixote que está enganado quando vê aquilo que vê, pois ele responderá que nós é que estamos enganados por vermos o que vemos! 

Como qualquer um que padece da nefasta mania da denegação, a ideia que ele faz do verdadeiro, mesmo sendo falsa, é mais verdadeira do que a realidade do verdadeiro, que considerará sempre falsa. A sua imaginação dita a lei, ele é pobre de mundo real e rico de ficções puras. O imaginário sobrecarrega a matéria do mundo, cobrindo-a de um véu de ilusões.(...)"

Michel Onfray in O Princípio de Dom Quixote

09 abril 2017

Síntese e Remorso

Ilíada, VI, v. 357-58

A morte de Astíanax
não será dita. Ninguém a contou.
Ninguém a poderá contar.

Acerca da fragilidade
de uma criança
nada diremos.

Acerca da sua força e das imagens
nocturnas que se espelham,
como o adversário se espelha
na polida solidez do escudo,
sobre isso talvez nos seja dado
dizer o que não merece mais
do que síntese e remorso.

Luís Quintais in "A Noite Imóvel"

11 julho 2016

"7.
Embora a reacção normal quando vemos uma coisa bela seja querer adquiri-la, o nosso desejo real pode não ser tanto o de possuir o que achamos belo, mas o de reivindicarmos permanentemente as qualidades interiores que ele consubstancia.
O facto de possuirmos um tal objecto pode ajudar-nos a realizar a nossa ambição de absorver as virtudes a que ele faz referência, mas não devemos pressupor que aquelas virtudes passam automaticamente e sem esforço para nós através da posse. Tentarmos adquirir algo que achamos belo pode ser, de facto, a forma menos imaginativa de lidar com  anseio que desperta em nós, tal como tentar dormir com alguém pode ser a reacção mais grosseira a um sentimento de amor.
O que procuramos, a um nível mais profundo, é parecermo-nos interiormente com - em vez de possuirmos fisicamente - os objectos e os locais que nos tocam pela sua beleza."

Alain de Botton in A Arquitectura da Felicidade

20 junho 2016

Ragnarok

Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens representam as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque nos oprime uma esfinge, sonhamos com uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Sem assim, a exaltação, o alvoroço, a ameaça e o júbilo que teceu o sonho dessa noite? Tentarei, apesar de tudo, essa crónica; acaso o facto de uma só cena integrar aquele sonho apague ou mitigue a dificuldade essencial.
O lugar era a Faculdade de Filosofia e de Letras; a hora, o entardecer. Tudo (como costuma acontecer nos sonhos) era um pouco diferente; uma ligeira magnificação alterava as coisas. Elegíamos autoridades; eu falava com Pedro Henrique Ureña, que na vigília morreu há muitos anos. Bruscamente aturdiu-nos um clamor de manifestação ou de filarmónica. Um alarido humano e animal chegava do Bajo. Uma voz gritou: “Aí vêm!” e depois: “Os Deuses! Os Deuses!” Quatro ou cinco sujeitos saíram da turba e ocuparam o estrado da Aula Magna. Todos aplaudimos a chorar; eram os Deuses que voltavam, após o desterro de séculos. Engrandecidos pelo estrado, a cabeça tirada para trás e o peito para a frente, receberam com soberba a nossa homenagem. Um segurava um ramo que se conformava, sem dúvida, à simples botânica dos sonhos; outro, num amplo gesto, estendia a mão que era uma garra; uma das caras de Jano olhava com receio o encurvado bico de Thoth. Talvez excitado pelos nossos aplausos, um deles, já não sei qual, irrompeu num cacarejar vitorioso, incrivelmente acre, com algo de gargarejo e de silvo. As coisas mudaram a partir daquele momento.
Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e feral tinham atrofiado neles o humano; a lua do Islão e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com esses prófugos. Testas muito baixas, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulato ou de chinês e belfos bestiais mostravam como degenerara a estirpe olímpica. Os seus atributos não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas ao luxo maligno dos garitos e dos lupanares do Bajo. Numa botoeira sangrava um cravo; num saco justo adivinhava-se o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que jogavam a sua última cartada, que eram manhosos, ignorantes e cruéis como velhos animais de presa e que, se nós deixássemos tomar pelo medo ou pela pena, acabariam por nos destruir.
Tirámos os pesados revólveres (de súbito apareceram revolveres no sonho) e alegremente demos morte aos Deuses.

Jorge Luis Borges in Obras Completas II

23 maio 2016

(...)Quando saio de casa para dar um passeio, sem saber ainda onde me levarão os meus passos, e dou ouvidos ao meu instinto, creio, por estranho e bizarro que pareça, que tendo inevitavelmente para sudoeste, para um certo bosque, campo, prado deserto ou monte nessa direcção. O ponteiro da minha bússola recusa fixar-se - oscila alguns graus e nem sempre aponta como devia para sudoeste. É bem verdade, e tem razão nesta variação, mas aponta invariavelmente para um ponto entre o oeste e su-sudoeste. Assim se me afigura o futuro, e a terra parece-me mais inesgotável e mais rica nessa direcção. O traçado que as minhas caminhadas descrevem não é tanto um círculo, mas uma parábola, ou uma daquelas órbitas de cometa que se pensou descreverem curvas definitivas, mas neste caso espraiando-se para ocidente, ocupando a minha casa o lugar do sol. (...)

Henry David Thoreau in Caminhada

11 maio 2016

Do LIvro dos Números

Como são penetrantes os vales que se prolongam nos olhos que
                                                                (transbordam de visões
Transbordam como cântaros à beira da corrente
Como aloés plantados ao redor do acampamento
Como imagens de cedros vindo à memória de repente
Transbordam de palavras de quem vê e cai
Com os olhos cheios de sementes

Ele vê, mas não é para agora
Ele contempla, mas não de perto
Planta cedros para os anos futuros
Carrega cântaros para a sede que vem

Como são belas moradas as crianças prolongando-se
Como as palavras de Balaão que sopra nos juncos
Palavras do homem no lugar penetrante
De quem ouve. Palavras
De quem cai em êxtase e se ergue pelo tacto

Contempla por entre os aloés e os dedos
A criança que acampou connosco agora
O menino que abre uma estrela e nos convoca
Ele contempla. Ele vem. Ele é um cedro que transborda

Palavra de quem vê e derrama
Os olhos e os cântaros sobre si

Daniel Faria in Poesia