31 maio 2017

O real nunca existiu

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Nietzsche tem razão em opor o trabalho da memória ao do orgulho, isto é: as lógicas da história (que inquietam) às loucuras da paixão (que tranquilizam). Este conflito entre o sangue-frio daquilo que ocorreu e o sangue quente daquilo que poderia ser, esse combate entre o que é a virtualidade, essa luta entre a modéstia do real e a arrogância das ideias, entre a imanência epicurista e o inteligível platónico, entre o “sentido da terra” nietzschiano e o trancendentalismo kantiano, essa dialéctica produz, com efeito, infinitas contorções que engendram a denegação.
A denegação cresce como uma flor do Mal no estrume de um orgulho imoderado: julgamo-nos grandes, fortes, belos, imaginamo-nos poderosos, importantes, virtuosos; mas somos o contrário: pequenos, fracos, feios, impotentes, zé-ninguéns, ridículos, desconhecidos, ignorados, viciosos. Presumimo-nos e consideramo-nos princesa, generosa, magnânima, benevolente, sensível, humanitária, altruísta; somos fada má, interesseira, egoísta, mesquinha, insignificante, má, ciumenta. A memória diz: “fada má”; o orgulho afirma: “princesa”… A memória cede; o orgulho triunfa. Tudo o que revela a baixeza desaparece e não ocorreu; tudo o que revelaria a beleza e que não ocorreu torna-se verdade de substituição: o mundo do denegador é um mundo de substituição, um universo em que aquilo que não se conseguiu ser deixa o lugar ao que se teria querido ser e que passa a ser o verdadeiro…
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Michel Onfray in O Princípio de Dom Quixote

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