20 junho 2016

Ragnarok

Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens representam as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque nos oprime uma esfinge, sonhamos com uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Sem assim, a exaltação, o alvoroço, a ameaça e o júbilo que teceu o sonho dessa noite? Tentarei, apesar de tudo, essa crónica; acaso o facto de uma só cena integrar aquele sonho apague ou mitigue a dificuldade essencial.
O lugar era a Faculdade de Filosofia e de Letras; a hora, o entardecer. Tudo (como costuma acontecer nos sonhos) era um pouco diferente; uma ligeira magnificação alterava as coisas. Elegíamos autoridades; eu falava com Pedro Henrique Ureña, que na vigília morreu há muitos anos. Bruscamente aturdiu-nos um clamor de manifestação ou de filarmónica. Um alarido humano e animal chegava do Bajo. Uma voz gritou: “Aí vêm!” e depois: “Os Deuses! Os Deuses!” Quatro ou cinco sujeitos saíram da turba e ocuparam o estrado da Aula Magna. Todos aplaudimos a chorar; eram os Deuses que voltavam, após o desterro de séculos. Engrandecidos pelo estrado, a cabeça tirada para trás e o peito para a frente, receberam com soberba a nossa homenagem. Um segurava um ramo que se conformava, sem dúvida, à simples botânica dos sonhos; outro, num amplo gesto, estendia a mão que era uma garra; uma das caras de Jano olhava com receio o encurvado bico de Thoth. Talvez excitado pelos nossos aplausos, um deles, já não sei qual, irrompeu num cacarejar vitorioso, incrivelmente acre, com algo de gargarejo e de silvo. As coisas mudaram a partir daquele momento.
Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e feral tinham atrofiado neles o humano; a lua do Islão e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com esses prófugos. Testas muito baixas, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulato ou de chinês e belfos bestiais mostravam como degenerara a estirpe olímpica. Os seus atributos não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas ao luxo maligno dos garitos e dos lupanares do Bajo. Numa botoeira sangrava um cravo; num saco justo adivinhava-se o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que jogavam a sua última cartada, que eram manhosos, ignorantes e cruéis como velhos animais de presa e que, se nós deixássemos tomar pelo medo ou pela pena, acabariam por nos destruir.
Tirámos os pesados revólveres (de súbito apareceram revolveres no sonho) e alegremente demos morte aos Deuses.

Jorge Luis Borges in Obras Completas II

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