04 janeiro 2016

O Forasteiro

(...) 
Durante a noite, o forasteiro veio ver-me. Não acendi qualquer candeeiro, ajudei-o a tirar o casaco e pedi-lhe que bebesse chá comigo, pois era exactamente a hora em que todos os dias bebo chá. E em vistas de tanta intimidade, precisamos de nos sentir à vontade. Quando nos íamos sentar à mesa, reparei que o meu conviva estava inquieto, com o rosto cheio de ansiedade e as mãos a tremer.
-Ah, sim - disse eu - eis uma carta para si - e comecei a deitar o chá. - Quer açucar? Talvez limão? Aprendi que na Rússia bebe-se chá com limão. Quer experimentar?

Depois, acendi um candeeiro e coloquei-o num canto distante, um pouco alto para que na sala houvesse alguma penumbra, uma penumbra rósea. Daquela forma, o rosto da minha visita parecia seguro, mais caloroso e, de longe, mais familiar.
Saudei-o uma vez mais com as palavras.
- Sabe que há já algum tempo que o venho esperando?

- E antes de o forasteiro ter tempo de se espantar expliquei: - Conheço uma história que só a si posso contar: não me pergunte porquê, apenas diga se a sua cadeira é confortável, se o chá tem açucar suficiente e se quer ouvir a história.
A minha visita teve de sorrir. Limitou-se a responder:
- Sim.
- É um sim a todas as três perguntas?
- A todas as três.

Recostámo-nos ambos ao mesmo tempo nas nossas respectivas cadeiras, pelo que ficámos com o rosto um pouco mergulhado na sombra. Pousei a minha chávena, satisfeito com o tom dourado do chá, esqueci aos poucos esta alegria e perguntei de súbito:
- Lembra-se de Deus?

O forasteiro pôs-se a reflectir. Os olhos pareciam profundos no escuro e os poucos pontos de luz nas pupilas assemelhavam-se a duas longas alamedas num parque sobre as quais o Verão e o Sol se derramavam luminosos e vastos. Também eles começaram a inundar-se de uma crescente obscuridade até se reduzirem a um ponto distante e tremeluzente - a saída no outro extremo para um dia talvez muito mais brilhante. Enquanto imaginava tudo isto, ele disse, hesitante como que relutante em usar a voz:
- Sim, ainda me lembro de Deus.
- Ainda bem - agradeci-lhe -, porque a minha história tem a ver com Ele. 
(...)
Há muito tempo, Deus enfrentou esta incerteza.
Porque a Sua paciência é tão grande quanto a Sua força. Uma vez, contudo, quando densas nuvens se interpuseram durante longos dias entre Ele e a Terra, a ponto de deixar de saber se não teria imaginado tudo - o mundo, os homens e o tempo - chamou a Sua mão direita, que, há muito banida da sua vista, se escondera em trabalhos pequenos e sem importância. Compareceu voluntariosa, pois acreditava que Deus queria por fim perdoá-la. Quando Deus a viu perante Si com toda a sua beleza, juventude e força, ficou aberto ao perdão. Mas, recordando-se a tempo, ordenou, sem olhar para ela: 

- "Vai lá abaixo à Terra. Toma a forma existente entre os homens e deixa-te ficar nua, numa montanha, para te poder observar de mais perto. Assim que chegares lá abaixo, vai ter com uma mulher jovem e diz-lhe, mas com toda a gentileza: quero viver. A princípio, haverá à tua volta um pouco de escuridão que aumentará em grandeza, que se chama infância; depois, serás um homem e subirás à montanha, como te ordenei. Tudo isto durará naturalmente apenas um instante. Adeus". (...)

Rainer Maria Rilke in Histórias de Deus

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