17 dezembro 2015

(…) A mim, que, no fundo, só tinha como profissão tocar violino e ler contos de fadas, cabia ocupar-me da música do nosso grupo. e observei, então, como uma época grandiosa eleva qualquer indivíduo insignificante e aumenta as suas forças. Não só tocava violino e dirigia coros, mas juntava igualmente velhas cantigas e corais, escrevia motetes e madrigais de seis e oito vozes e ensaiava-os. Mas não é isso que quero contar.

Afeiçoei-me a muitos dos meus companheiros e superiores. Mas poucos deles marcaram as minhas recordações tão intensamente como Leo, em quem naquela altura, aparentemente, ninguém reparava. Leo era um dos nossos servos (naturalmente voluntários como nós); ajudava a carregar as bagagens e cabia-lhe muitas vezes servir pessoalmente o Orador. Este homem singelo tinha algo de obsequioso., tão discretamente cativante que o amávamos todos. Fazia alegremente o seu trabalho, quase sempre cantando ou assobiando, só era visto quando se precisava dele - era um servo ideal. Além disso, todos os animais se afeiçoavam a ele. Levávamos quase sempre um cão connosco, que nos seguia por causa de Leo. Sabia domesticar pássaros e atrair borboletas. O que o levava ao País da Manhã era o seu desejo de aprender a linguagem dos pássaros pelo princípio da chave de Salomão. Ao lado de certas figuras da nossa Ordem que, sem questionar o seu valor e a sua fidelidade, tinham, porém, algo de exagerado, algo de estranho, solene ou fantástico, este servo Leo parecia simples - e amavelmente modesto.

O que me dificulta particularmente o relato da narrativa é a grande diversidade de cada uma das imagens da minha memória. Já disse, pois, que marchávamos, ora em pequeno grupo ora formando um pelotão ou mesmo um exército. Por vezes, contudo, também ficava para trás, em qualquer região, com um único companheiro, ou completamente sozinho, sem tendas, sem Dirigentes, sem Oradores. Além disso tornava-se difícil contar esta experiência porque nós não caminhávamos apenas através de espaços, mas igualmente através de épocas. Caminhávamos para o País da Manhã, mas também para a Idade Média ou para a Idade Áurea. Percorríamos de passagem a Itália ou a Suiça, mas, de vez em quando, também passávamos a noite no século X e morávamos com patriarcas e fadas. (…)

Hermann Hesse in Viagem ao País da Manhã

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