10 dezembro 2015

"Fui à proa e mandei recolher parte da corrente, para estar pronto a levantar a âncora e deslocar imediatamente o barco, caso fosse necessário. 'Será que vão atacar?', sussurrou uma voz aterrorizada. 'Com este nevoeiro seremos todos chacinados', murmurou outra. Os rostos contraíam-se de tensão, as mãos tremiam ligeiramente, os olhos tinham parado de pestanejar. Era muito curioso ver o contraste das expressões dos brancos e dos negros da nossa tripulação, que desconheciam esta parte do rio tanto como nós, embora vivessem apenas a 1200 quilómetros dali. Os brancos, para além de, naturalmente, estarem muito perturbados, pareciam estar dolorosamente chocados com aquele abominável ruído. Os outros estavam alerta e mostravam-se naturalmente interessados: mas, na essência, os seus rostos estavam calmos, mesmo os de um ou dois que sorriam enquanto puxavam a corrente. Alguns trocavam frases curtas e resmungadas, que pareciam resolver o assunto satisfatoriamente. Junto de mim estava o chefe, um jovem negro de costas largas, severamente envolto em panos orlados de azul-escuro, de narinas agressivas e o cabelo artisticamente puxado para o alto em anéis oleosos.

'Aha!', disse eu, só por boa camaradagem. 'Panha ele', disse ele de súbito, abrindo muito os olhos raiados de sangue e mostrando de relance os dentes afiados. 'Panha ele. Dá para nós'. 'Para vocês?', perguntei. 'E que fariam com eles?' 'Comer ele!', disse laconicamente e, apoiando o cotovelo à amurada, olhou o nevoeiro com uma atitude digna e profundamente pensativa. Eu teria ficado, sem dúvida, perfeitamente horrorizado, se não me tivesse ocorrido que ele e os seus companheiros deviam estar esfomeados, que a sua fome tinha vindo a aumentar, pelo menos, durante o último mês. (…) 

Olhava-os com um interesse crescente, não porque me ocorresse que poderia ser comido em breve, embora confesse que, naquele momento, me tinha apercebido - a uma nova luz, de facto - do ar pouco saudável que tinham os peregrinos e tive esperança (sim, tive mesmo) de que o meu aspecto fosse, como direi?…ainda menos apetitoso. Um toque de fantástica vaidade que ia bem com a sensação de sonho que, naquela altura, invadia os meus dias. Talvez também estivesse um pouco febril. Não podemos passar a vida a tomar o pulso a nós mesmos. Tinha muitas vezes 'um pouco de febre', ou um pouco de outras coisas - como as patadas brincalhonas da selva, a frivolidade preliminar que antecedia o ataque mais sério que estava para vir. 

Sim: observava-os como se observa qualquer ser humano, com curiosidade relativamente aos seus impulsos, motivos, capacidades, fraquezas, quando confrontados com a provação de uma inexorável necessidade física. Coibição! Que coibição poderia ser? Seria superstição, repulsa, complacência, medo, ou alguma espécie de honra primitiva? Não há medo que resista à fome, nem complacência que a faça desaparecer, a repulsa acaba onde começa a fome. E quanto às superstições, às crenças e àquilo a que possa chamar princípios, não são mais do que pedaços de palha levados pela brisa. Não conhecem a perversidade de uma fome prolongada, o seu tormento exasperante, os pensamentos negros, a sombria taciturna ferocidade?"

Joseph Conrad in Coração das Trevas

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