29 janeiro 2015

Sons

"Os raios que escoam através da persiana já não são lembrados quando se retirar a persiana. Nenhum método nem disciplina suplanta a necessidade de permanecer sempre alerta. O que é o curso da história, a filosofia, ou a poesia, por mais seleccionada que seja, ou a melhor sociedade, ou a mais admirável rotina da vida, em comparação com a disciplina de olhar incessantemente o que existe para ser visto? Leitor, mero estudioso, observador, o que há-de ser? Lede o vosso destino, vede o que está à vossa frente e marchai para o futuro.
No primeiro verão não li nenhum livro; cuidei dos feijões. E muitas vezes fiz até coisas melhores. Houve ocasiões em que eu não era capaz de sacrificar a beleza do momento presente a qualquer trabalho intelectual ou manual. Gosto de uma larga margem para a minha vida. Às vezes, numa manhã de verão, após o banho da praxe, do amanhecer ao entardecer sentava-me na ensolarada soleira, absorto num devaneio, a meio dos pinheiros, nogueiras e sumagres, em completa solidão e serenidade, enquanto os pássaros ao redor cantavam ou esvoaçavam silenciosos através da casa, até que o sol, batendo na janela do lado do poente, ou o barulho de um carro na longínqua estrada, me fizesse lembrar  a passagem do tempo. Crescia eu nessas temporadas que nem o milho durante a noite, e elas eram melhores que qualquer outro trabalho feito com as mãos. Não representavam tempo além e acima da minha quota habitual. Percebia aquilo a que os orientais chamam contemplação e renúncia aos trabalhos. Na maioria das vezes, não me importava como as horas passavam. O dia avançava como a iluminar algum trabalho meu, era manhã e , vejam, já é noite, e nada de memorável acontecera. Em vez de cantar como os pássaros, sorria silenciosamente pela minha incessante boa sorte. Como o pardal pousado numa nogueira diante da minha porta tinha o seu chilreo, assim tinha eu o riso reprimido ou o suatado gorjeio que ele poderia ouvir fora do meu ninho. O meus dias não eram os dias da semana, com o carimbo das divindades pagãs, nem eram enfatiados em horas ou estilhaçados pelo tique-taque de um relógio; porque vivi ao estilo dos índios puri, de quem se diz que "têm uma única palavra para ontem, hoje e amanhã, e que expressam a variedade de significados apontando atrás para dizerem ontem, em frente para dizerem amanhã e para a cabeça para mostrarem o dia que passa". Sem dúvida, isso para os meus concidadãos era pura ociosidade; mas se eu fosse julgado pelo padrão dos pássaros e das flores, não seria condenado. É bem verdade que um homem deve encontrar razões em si mesmo."

Henry David Thoreau in Walden ou a Vida nos Bosques 

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