09 novembro 2014

O Eremita da Serra Negra

"Li há pouco numa revista literária, num artigo de um poeta prosador muito conhecido, e que foi meu amigo, uma referência entristecida à minha extinta personalidade literária e filosófica. Dizia ele, referindo-se aos homens da presente geração, e aos da anterior, que alguns haviam abandonado, por tédio ou falta de tempo, carreiras literárias que se haviam apresentado prometedoras. A minha era - segundo ele - uma dessas. "E o que é feito" perguntava "de Carlos d'Araújo, cuja promessa filosófica era tanta? Certo dia queimou, com pasmo e horror dos amigos, que a não puderam salvar, toda a obra filosófica ainda incompleta e retirou-se, definitivamente, para a sua aldeia natal. Nunca mais nos falou de si. Dedicou-se de toda a alma a fazer-nos esquecer. E isto sem motivo aparente, sem outra razão que um tédio horroroso e profundo! Que desgraçada geração a nossa! que geração de falhados perdidos!"

Por acaso li estes períodos. No meu actual estado de espírito devia ser-me indiferente esta apreciação. Feriu-me porém, por parecer verídico que eu, cujas ideias foram sempre tão altas, cujas aspirações tão elevadas, queimara por um mero tédio de doido uma obra em que pusera a minha ânsia de verdade e a minha aspiração a contribuir para a … humanidade. Determinei, por isso, descrever as horrorosas circunstâncias metafísicas que me fizeram abandonar de todo a especulação filosófica, a ambição da glória e a renunciar a qualquer interesse na vida e no progresso ou regresso da humanidade".

Fernando Pessoa in O Mendigo e Outros Contos

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