19 abril 2014

Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com Edite ao volante. Escrevo: é um meio-dia de Inverno.
Só que enquanto escrevo tenho chuva na janela à minha esquerda e isso obriga-e a acrescentar que o meio-dia que estou rememorar era (foi) um rasgão de céu e de luz numa estação sombria. Regressava a casa em saudação de primavera em pleno mês de janeiro. Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu. Ponho-lhe música de fundo, uma música burlesca, se possível, como o "Quarteto das Dissonâncias" de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a música é um privilégio abençoado, já lá dizia o empreiteiro Ramires por outras palavras. E por Ramires, lembro-me da tarde em que o companheiro dele, recostado na cama, se saiu com esta para o informar devidamente:
"Amigo Ramires, amigo Ramires, o amigo anda para aí todo seguro do seu Professor mas sabe o que é que alguns hospitais fazem agora?"
(Suspensão. Ramires de olhos no tecto, à espera.)

"Fazem" recomeçou Martinho, "uma manigância que nem você nem o mais astuto é capaz de desmanhar. Levam-no para a sala de operações, está a compreender, mostram-lhe um cirurgião de primeiríssima, põem-lhe música se for caso disso, música para eles é um abelhar para entontecer, depois atiram-lhe com um anestesista para cima, picadela, coisa e tal, e assim o amigo fica a ressonar em ponto morto, em vez do propriamente cirurgião entregam-no a um velhadas de prateleira ou a um doutorzeco qualquer que ande por aí aos caídos. Topou?"
(…)
Dois anos. Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para sempre a minha viagem à desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos à deriva por indícios trazidos na corrente. Vou interrogando e retendo, apurando a caligrafia da recomposição, e quando chego ao convite do meu companheiro de hospital para a celebração de lagosta com champagne, não hesito em fechar e pôr assinatura no texto. disse e vivi, Acta est fabula.
Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta condigna mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música.

Janeiro de 1997

José Cardoso Pires in Valsa Lenta

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