"Chegou o 8 de Maio, dia da exultação para os russos, de desconfiada vigília para os polacos, para nós de alegria raiada de nostalgia profunda. A partir desse dia, com efeito, as nossas casas já não eram proibidas, já nenhuma frente de guerra nos separava, nenhum obstáculo concreto, só papéis e ofícios; sentíamos que agora nos era devido o repatriamento, e cada hora passada no exílio pesava-nos como chumbo; e ainda mais pesava-nos a absoluta falta de notícias da Itália. Todavia comparecemos em massa para assistir à representação dos russos, e fizemos bem.
O teatro havia sido improvisado no ginásio da escola; de resto, fora tudo improvisado, os actores, as cadeiras, o coro, o programa, as luzes, o pano. Vistosamente improvisado era o fraque que envergava o apresentador, o capitão Egorov em pessoa.
Egorov apareceu na ribalta perdido de bêbado, enfiado numas desmedidas calças cuja cintura lhe chegava aos sovacos, enquanto a cauda de andorinha lhe varria o chão. Estava tomado por uma desconsolada tristeza alcoólica, e anunciava com voz sepulcral os vários números cómicos ou patrióticos do programa, por entre sonoros soluços e acessos de pranto. O seu equilíbrio era dúbio: nos momentos cruciais agarrava-se ao microfone, e então o clamor do público ficava de repente suspenso, como quando um acrobata salta do trapézio para o vácuo.
Compareceram todos no palco: a Kommandantur inteira. Maria como directora do coro, que era óptimo como todos os coros russos, e cantou Moskva moyà (A minha Moscovo) com maravilhoso arrebatamento e harmonia, e evidente boa fé. Galina exibiu-se sozinha, em traje de circo e botins, numa vertiginosa dança em que revelou dotes atléticos fantásticos e insuspeitados; foi submersa de aplausos, e agradeceu comovida ao público com inúmeras reverências setecentistas, de faces vermelhas que nem um tomate e com os olhos cintilantes de lágrimas. Não ficaram atrás o doutor Dantchenko e o mongol das bigodaças, que, embora plenos de vodka, executaram uma daquelas danças endemoninhadas em que se salta pelos ares, agachando-se, esticando a perna e fazendo uma pirueta como se tivesse piões nos calcanhares.
Seguiu-se uma singular interpretação de Titina de Charlie Chaplin, personificada por umas floridas donzelas da Kommandantur, de seio e de costados exuberantes, mas caprichosamente fiel ao protótipo quanto a chapéu, bigode, sapatões e bengala. E finalmente, anunciado por Egorov com voz lacrimosa, e saudado por todos os russos com um selvagem berro de consenso, apareceu em cena Vanka Vstanka.
Quem é Vanka Vstanka, não sei dizê-lo com precisão, talvez uma conhecida máscara popular russa. No caso concreto, era um pastorinho tímido, aparvalhado e apaixonado, que desejava declarar-se à sua bela e não se atreve. A bela era a gigantesca Vassilissa, a valquíria responsável pelo serviço da cantina, corvina e membruda, capaz de estender com uma chapada um comensal turbulento ou um galanteador importuno ( e mais de um italiano já tinha feito a prova): mas em cena, quem a reconheceria? Estava transfigurada pelo seu papel: o cândido Vanka Vstanka (na vida real, um dos tenentes idosos), de cara toda lambuzada com pó de arroz branco e róseo, cortejava de longe, arcadicamente, através de vinte melodiosas estrofes para nós infelizmente incompreensíveis, e estendia para a amada umas hesitantes mãos em súplica, que ela rejeitava com graça ridente mas resoluta, gorjeando outras tantas réplicas gentis e escarninhas. Mas a pouco e pouco as distâncias iam diminuindo, enquanto o fragor dos aplausos crescia em proporção; após longas disputas os dois pastores trocavam pudicos beijos nas faces, e acabavam por se esfregar vigorosa e voluptuosamente quadris contra quadris, com incontível entusiasmo do público".
Primo Levi in A Trégua
Sem comentários:
Enviar um comentário