"Alcides Caimão Proença era um típico grande agrário, soberbo, magnânimo na crueldade, que enviuvara cedo, entregando a sua filha única a uma ama, para que a criasse como uma menina rica, com muitos cuidados e carinhos.
Ele, imperioso e brutal como era, não se coibia de desflorar as filhas dos seus criados da lavoura. Até violou por várias vezes um rapazito autista, de grandes olhos assustados, que vagueava pela calçada do monte, arrastando a sua miséria, trincando côdeas que lhe davam, filho de uma prostituta e de um cigano vadio.
Lela, a filha do riquíssimo lavrador, crescia entretanto, quase à solta, e aprendia as primeiras letras com uma professora particular, que ia ao monte dar-lhe lições. Corria desatinadamente pelos brejos e outeiros floridos da herdade da Primavera, de cabelos ao vento, bebendo os cheiros da terra e do jasmin, que embalsamavam o ar.
Adorava montar a cavalo e o pai tinha-lhe dado um alazão enorme mas de galope suave, em cujo dorso ela percorria vastos domínios do senhor Caimão, nome que os camponeses o apostrofavam rancorosamente nas suas costas.
Lela tornara-se uma bonita rapariga, morena clara, de olhos muito negros, meigos e luminosos.
Pela velha lei dos contrastes que se atraem, Lela deixou-se fascinar por um trabalhador que conduzia um tractor nas lides da lavoura, muito louro, alto e musculoso, mas de feições quase angélicas, não fora o risinho travesso, por vezes mesmo sensual, dos seus lábios perfeitos e o olhar azul, que a despiam sem cerimónia.
Começaram então a dar grandes passeios juntos, a cavalo ou a pé pelo meio dos matos, lavradas e terras várias de semeadura, ribanceiras, montados de sobro e azinho.
Sentavam-se no chão, às vezes à sombra de algum chaparro, ele desnuadava-a, acariciava-a muito, beijava-lhe o corpo todo, inventava loucos prazeres, mas não se atrevia a desvirginá-la.
Ela é que exigiu que o fizesse, queria ser toda dele.
Amaram-se então até ao êxtase, ao grito, às lágrimas. Atingiam a comunhão suprema dos seus corpos e do que eles chamavam as suas almas".
Urbano Tavares Rodrigues in Nenhuma Vida
Sem comentários:
Enviar um comentário