17 abril 2013

Arpad Szenes

"Um quadro é um rosto; mas o rosto sem linguagem e que, portanto, não mente. Contamos sonhos e lembranças - tudo é astúcia e jogo sobre o pano da vida. Mas um risco na pedra quebra as portas do inferno, e o homem aparece na sua profundidade. Quando o primeiro desenho se inscreveu nas paredes de uma gruta, foi quando a primeira aspiração rompeu do inconsciente para a luz. Os quadros de Arpad têm essa vitalidade do fantástico ciclo de Lascaux, são a nómada prova do hóspede que, no mesmo instante, parte. E deixa um risco breve, o lento modular da neve dos campos, um fio de água que da floresta corre e se suspende, o sulco da lebre e da rena, o vestígio de uma pegada, um último toque de vento. É como se pintasse algo que renuncia à sua própria história; como se antecipasse a partida, com esse desejo de a ver iniciada no tempo aplacado, já sem sol ardente ou frio triste. 
Os quadros de Arpad Szenes são uma pulsação, um idílio secreto de laços de não sei que materna face. Quando figuram alguma coisa, envolve-os a ironia; porque a ironia é a exasperação pacífica do destino. E o destino é o de esperar, na caverna de Platão ou no templo de Altamira, esperar o abrir das nuvens sobre os caminhos.
Quando eu vi Arpad Szenes pela primeira vez, ele disse-me: "A sobrevivência de um artista nos seus começos é difícil. Ele não se alimenta de pouco, tem de comer solidariamente para viver". Não era uma divagação, nem uma queixa. Era um pensamento longamente pesado e que não tocava apenas a natureza orgânica. Ele sabia que um homem precisa de alimento sólido; na linguagem dos místicos, alimento sólido significa o espírito. E é assim que a vida de um homem é penosa e que a sua passagem é por vezes desolada, ainda que possuindo o verde riso da malaquite e a transparência da ágata ou a múltipla e maternal suavidade do jade.
Vi os quadros de Arpad. Quem vê alguma coisa, absolutamente, alguma vez? Dizem os sábios, ou quem assim é chamado, que não usamos a vista senão de maneira deficiente e furtiva, e que continuamente nós reduzimos e atenuamos a faculdade de ver. Se não, a vida tornava-se insuportável. Por isso é que certas miopias que são voluntárias; e há a cegueira que protege o coração; e há o método de imaginar, conservando a névoa do olhar do recém-nascido. Ver profundamente é um risco; a arte é um risco. Os quadros de Szenes são, muitas vezes, tão desprendidos e silenciosos, que têm apenas a relação com uma alma pré-natal, uma felicidade íntima e eterna. Ninguém ali habita - não há portadores de mensagens, não há heróis em acção. Há uma felicidade quase inumana, radiosa, indestrutível, como a da criança ainda defendida do presságio, do saber e do conformismo da morte. E sobre esse mistério da felicidade há a malaquite e o pórfiro, e os veios da pedra - para quem apaga a força do olhar e moderadamente vê o mundo e os homens."

                                          28 de Abril de 1972

Agustina Bessa-Luís in Longos Dias têm Cem Anos



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