Durante muito tempo, 
o caminho-de-ferro acompanha o rio 
como o cão acompanha 
as passadas e o cheiro 
daquele a quem deve obediência. 
Já não há muitos comboios nesta linha, 
mas de quando em quando ronca 
um motor a diesel e os rodados, 
como dedos de gigante, tamborilam 
em ostinato as suas duas notas 
nos tensos timbales dos carris. 
À vista do barco, gente 
de súbito amistosa saúda das janelas. 
O próprio maquinista por cortesia faz 
a buzina reboar pelas quebradas. 
Nós retribuímos, acenando bonés, 
erguendo brados. 
Cordialidades 
de quem anda e se cruza 
pelos caminhos do mundo. 
E a efémera 
comunhão com os desconhecidos 
faz-nos sentir companheiros 
de tal viagem que não é esta viagem. 
Isto é: um pouco mais humanos, 
um pouco menos poetas. 
Mas logo se afasta o comboio, 
soberbo da sua rapidez, 
desdenhoso das delongas do barco. 
Com ironia, pergunta: diz-me a quantos 
nós viaja, amigo barco, 
o teu veloz vagar? 
E o barco, respondiendo à letra: 
e tu, comboio amigo, diz-me quantos 
poetas levas a bordo? 
Um empate técnico, suponho. 
(Coisa que aliás não costuma ser 
o desfecho das fábulas.) 
A. M. Pires de Cabral in Antes que o Rio Seque
 
 
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