25 janeiro 2013

Fábula do Comboio e do Barco

Durante muito tempo,
o caminho-de-ferro acompanha o rio
como o cão acompanha
as passadas e o cheiro
daquele a quem deve obediência.

Já não há muitos comboios nesta linha,
mas de quando em quando ronca
um motor a diesel e os rodados,
como dedos de gigante, tamborilam
em ostinato as suas duas notas
nos tensos timbales dos carris.

À vista do barco, gente
de súbito amistosa saúda das janelas.
O próprio maquinista por cortesia faz
a buzina reboar pelas quebradas.
Nós retribuímos, acenando bonés,
erguendo brados.

Cordialidades
de quem anda e se cruza
pelos caminhos do mundo.

E a efémera
comunhão com os desconhecidos
faz-nos sentir companheiros
de tal viagem que não é esta viagem.
Isto é: um pouco mais humanos,
um pouco menos poetas.

Mas logo se afasta o comboio,
soberbo da sua rapidez,
desdenhoso das delongas do barco.

Com ironia, pergunta: diz-me a quantos
nós viaja, amigo barco,
o teu veloz vagar?

E o barco, respondiendo à letra:
e tu, comboio amigo, diz-me quantos
poetas levas a bordo?

Um empate técnico, suponho.
(Coisa que aliás não costuma ser
o desfecho das fábulas.)

A. M. Pires de Cabral in Antes que o Rio Seque

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