10 dezembro 2012


"A partir deste momento, pode dizer-se que a peste se tornou o caso de todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação que lhes tinham causado esses acontecimentos singulares, cada um dos nossos concidadãos continuara as suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, assim devia continuar. Porém, uma vez fechadas as portas, aperceberam-se de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo saco e que era necessário arranjarem-se. Foi assim, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual como o da separação de um ente querido se tornou subitamente o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento deste longo tempo de exílio. 

Com efeito, uma das consequências mais importantes do cerrar das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado no cais da nossa estação com duas ou três recomendações, certos de voltarem a ver-se alguns dias ou algumas semanas mais tarde, mergulhados na estúpida confiança humana, a custo distraídos das suas ocupações habituais por esta partida, viram-se de repente afastados sem recurso, impedidos de se juntarem ou de comunicarem, pois as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicada a ordem do prefeito e, naturalmente, não era possível tomar em consideração os casos particulares. Pode dizer-se que esta invasão brutal da doença teve como primeiro efeito obrigar os nossos concidadãos a air como se não tivessem sentimentos individuais. Nas primeiras horas do dia em que a determinação entrou em vigor, a Prefeitura foi invadida por uma multidão de requerentes que, ao telefone ou junto dos funcionários, expunham situações igualmente interessantes e, ao mesmo tempo, igualmente impossíveis de examinar. Na verdade, foram precisos vários dias para que compreendêssemos que nos encontrávamos numa situação sem meio termo e que as palavras "transigir", "favor", "excepção" já não tinham sentido. 

A própria e pequena satisfação de escrever foi-nos recusada. Por um lado, com efeito, a cidade já não estava ligada ao resto do país pelos meios de comunicação habituais e, por outro lado, um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência, a fim de evitar que as cartas pudessem tornar-se veículo de infecção. Ao princípio, alguns privilegiados puderam chegar às portas da cidade e convencer as sentinelas a deixarem passar mensagens para o exterior. Era ainda nos primeiros dias da epidemia, em que os guardas achavam natural ceder aos sentimentos de compaixão. Porém, ao fim de algum tempo, quando os próprios guardas se convenceram bem da gravidade da situação, recusaram-se a tomar responsabilidade cuja extensão não podiam prever. As comunicações telefonicas interurbanas, autorizadas a princípio, provocaram tal afluência às cabines públicas e nas linhas que foram totalmente suspensas durante alguns dias, depois severamente limitadas aos chamados casos urgentes, como a morte, o nascimento e o casamento. Os telegramas tornaram-se então o nosso único recurso. Seres ligados pela inteligência, pelo coração ou pela carne ficaram reduzidos a procurar os sinais desta comunhão antiga nas maiúsculas de um telegrama de dez palavras. E como, na realidade, as fórmulas que se podem utilizar num telegrama se esgotam depressa, longas vidas em comum ou paixões dolorosas resumiram-se rapidamente a uma troca periódica de fórmulas feitas, como "Estou bem. Penso em ti. Saudades". 
Alguns entre nós, contudo, obstinavam-se em escrever e imaginavam sem descanso, para corresponder com o exterior, estratagemas que acabavam sempre por se revelar ilusórios. Mesmo quando alguns dos meios que tinhamos imaginado obtinham êxito, ficávamos sem o saber, visto não termos qualquer resposta. Durante semanas ficámos então reduzidos a recomeçar eternamente a mesma carta, a recopiar as mesmas informações e os mesmos apelos, a tal ponto que, ao fim de um certo tempo, as palavras que haviam saído em sangue dos nossos corações perdiam sentido. Recopiávamo-las então maquinalmente, tentando dar por meio destas frases mortas sinais da nossa vida difícil. E, finalmente, a este monólogo estéril e teimoso, a esta conversa árida com uma parede, o apelo convencional do telegrama parecia-nos preferível".

Albert Camus in A Peste

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