"(...)
A idosa fita o vazio, mas parece atenta aos movimentos dele. Parecem ter-se reconhecido. A presença dela é familiar, sentiu-se em algumas noites, quando as divisões da casa se carregavam bruscamente de uma tranquilidade suave, protectora, que inesperadamente o envolvia. Nunca, porém, tal lhe acontecera na rua, em pleno bulício do dia.
Ela levanta-se, ele deixa-a afastar-se alguns passos e levanta-se também: está a ir atrás dela, na cadência lenta do passado. As pernas magras, pálidas, os tornozelos finos. As meias curtas, transparentes, os sapatos leves, sem salto, práticos. O cabelo branco, curto. Os ombros de ossos salientes, encurvados. O vestido de mangas curtas, sem cintura, feito de um tecido fino, aos quadradinhos, com riscas vermelhas e cor de laranja sobre u fundo azul. Na mão esquerda, o saco de plástico, como outrora. Na direita, como há muito, o casaco de lã cinzenta, enrolado.
Ele apressa o passo, ultrapassa-a, vira-se bruscamente, estão frente a frente. Ela estremece! Reconhecera provavelmente o desconhecido que se deixara cair, extenuado, no banco à sua frente, à entrada do Ottomanelli. Ele também estremece. Assim, do nada, num banco, em frente a um restaurante, o fantasma!
O andar, a silhueta, o vestido, o casaco, o cabelo branco, curto, como uma peruca, o rosto entrevisto numa fracção de segundo. A testa e as sobrancelhas e os olhos e as orelhas de outrora, tal como o queixo. Só a boca perdera a delineação perfeita: era agora apenas uma linha, com os lábios demasiado compridos, sem contorno. O nariz também perdera a linha perfeita, alargara-se. O pescoço estava envelhecido, com a pele caída enrugada.
Segue-a agora à distância. A silhueta, o andar, o ar dela, não são precisos sinais de reconhecimento, tudo se encontra dentro de si, sabido, imóvel, não há razão para seguir, no meio da rua, aquela figura mascarada. Perdido em pensamentos, desatento, abranda o passo: a aparição desaparecera, como desejava. (...)"
Norman Manea in O Regresso do Hooligan
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