II
"- Já te disse para entrares! Vem já cá para dentro!
O menino cego estava sentado sózinho nos degraus, o olhar fixo em frente.
- Os homens já foram todos embora? - perguntou.
- Foram todos menos o velho Hezuh. Anda para dentro.
Detestava ir lá para dentro - para o meio das mulheres.
- Cheira-me a gato - disse ele.
- Vem já para aqui, Gabriel!
Entrou e encaminhou-se na direcção da janela. As mulheres estavam a resmungar com ele.
- Agora não saias daqui, menino.
- Sentado lá fora, estás mesmo a convidar aquele puma a entrar-nos na sala.
Não entrava ar pela janela e esgravatou o trinco da porta para a abrir.
- Não me abras essa janela, menino. Não queremos que o puma pule cá para dentro.
- Eu podia ter ido com eles - rabujou carrancudo. - Podia ter ido farejá-lo. Não tenho medo nenhum - afirmou ele ali fechado com aquelas mulheres, como se também fosse uma.
- A Reba diz que também consegue cheirá-lo.
Ouviu a velhota queixar-se lá no seu canto.
- Saírem à caça dele não vai servir de nada - lamentou-se ela. - Está aqui. Anda mesmo aqui a rondar. Se saltar cá para dentro, apanha-me a mim primeiro, depois apanha o menino, depois apanha...
- Cala a boca, Reba - ouviu a mãe dizer. - Eu cuido do meu menino.
Ele sabia cuidar de si próprio. Não tinha medo. Cheirava-lhe à fera - ele e Reba conseguiam farejá-la. Havia de pular para cima de eles dois primeiro; primeiro para cima da Reba e depois para cima dele. Tinha a forma de um gato normal, mas era maior, dissera-lhe a mãe. E onde nas patas de um gato doméstico se sentiam as unhas pontiagudas, nas do puma sentiam-se garras grandes como facas e dentes que eram facas também; deitava bafo quente e cuspia cal viva. Gabriel quase que sentia as garras nos ombros e os dentes na garganta. Mas não havia de deixar-se ficar assim. Havia de apertar os braços à volta do corpo do bicho e procurar-lhe o pescoço e puxar-lhe a cabeça para trás e cair com ele no chão até as garras se desencravarem dos ombros. Havia de lhe bater, bater, bater-lhe na cabeça, bater, bater, bater...
- Quem é que está com o velho Hezuh? - perguntou uma das mulheres.
- Só a Nancy.
- Devia ficar mais alguém lá em baixo - segredou a mãe dele.
- Devia ficar mais alguém lá em baixo - segredou a mãe dele.
Reba barafustou:
- Se alguém for à rua, é apanhado antes de chegar lá abaixo. Já disse que o puma anda por aqui. Cada vez está mais perto. Eu não lhe escapo de certeza.
O menino sentia-lhe o cheiro forte.
- Como é que ele entra aqui? Estão para aí todas espavoridas a propósito de nada.
Quem o disse foi a Minnie Magricela. A essa, não havia quem a trincasse. Estava protegida por um feitiço desde pequena- embruxada por uma curandeira.
- Se quiser, entra aqui sem problema nenhum - desdenhou Reba. - Rompe pela portinhola do gato e passa cá para dentro.
- Nessa altura, já nós estaríamos em casa da Nancy - desprezou Minnie.
- Vocês têm pernas para isso - resmungou a velhota.
O menino sabia que ele e ela não conseguiriam chegar lá. Mas havia de ficar onde estava e fazer frente ao animal. Estão a ver aquele ceguinho ali? Foi ele que matou o puma!
Reba começou a gemer.
- Pouco chiqueiro! - ordenou a mãe dele.
O gemido fez-se canto que brotava do fundo da garganta da velha.
"Lord, Lord,
Gonna see yo' pilgrim today.
Lord, Lord,
Gonna see yo'..."
- Chui!- sibilou a mãe. - Que barulho foi este?
Gabriel debruçou-se para o silêncio, teso e preparado.
Era uma série de baques e talvez um rosnido, distante, abafado, depois um grito agudo, primeiro muito longe, depois cada vez mais alto, cada vez mais perto, trazido de trás da colina, pelo quintal adentro, pelo alpendre acima. A cabana foi abanada pelo impacto de um corpo lançado contra a porta. A sala encheu-se de uma sensação de urgência e foi então que abriram a porta ao grito: Nancy!
- O puma apanhou-o! - gritou esta. - Apanhou-o, saltou pela janela e deu-lhe cabo do pescoço. Apanhou o Hezuh - berrou num pranto -, coitado do Hezuh.
Mais à noite voltaram os homens. Traziam um coelho e dois esquilos."
Flannery O'Connor in "O Gerânio - Contos Dispersos"
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