21 março 2012

Kjell Askildsen - Ali Está Enterrado o Cão

O Inverno soltou as suas garras em princípios de Março. Levantou-se um vento ameno, quase quente, de sudoeste e a neve, que repousava numa camada espessa desde antes do Natal, desmoronou-se e derreteu.
Uma sexta-feira à tarde, três dias depois da chegada do tempo ameno, Jakob E. foi buscar uma pá para a neve à garagem e dirigiu-se às traseiras da casa, onde começou a retirar a neve do alçapão da cave. As últimas duas ou três vezes que havia descido até lá, sentira um vago embora desagradável odor, cuja origem era incapaz de determinar. Agora queria abrir o alçapão e a porta da cave, e arejar tudo como devia ser depois do Inverno.
Passado algum tempo, quando pousou a pá e abriu o alçapão, foi tomado de assalto pelo que viu e cheirou ao mesmo tempo. Soltou um grito e largou o puxador, e o alçapão voltou a caír no seu lugar com estrondo. Gritou uma vez mais, estremeceu e deu alguns passos atrás, como se alguém o estivesse a perseguir.
Pouco a pouco o pânico foi-se esfumando e pensou: Mas isto é impossível. Fixou o olhar no alçapão da cave e voltou a pensar: Isto é impossível. Um cão morto, é impossível.
Mas ali estava o pestilento e decpomposto corpo de um grande cão de pêlo preto. Teria de fazer alguma coisa com ele. Simplesmente não sabia o quê.
Deixou ficar a pá da neve, passou pela frente da garagem e entrou em casa. Erna estava sentada junto à mesa da cozinha a ler o jornal. Não levantou o olhar. Jakob sentou-se à frente dela e acendeu um cigarro. Erna sorriu por alg que tinha lido. Jakob disse:
- Há um cão morto debaixo do alçapão da cave.
- Debaixo...Um cão morto?
- Está ali desde antes do Natal.
- Não.
- Não sei o que fazer. Só o fedor...E é muito grande.
- Desde antes do Natal? Meu Deus.
- Desde antes do grande nevão.
- Meu Deus, Jakob. O que vais fazer?
- Não sei.
Jakob levantou-se. Aproximou-se da janela. Passado um pouco, perguntou:
- Temos lixívia?
- Debaixo do lava-loiça.
Foi buscá-la e saiu. Entrou na garagem. Tirou de um gancho da parede uma corda de estender roupa que lá estava enrolada e voltou para as traseiras da casa. Atou a ponta da corda ao puxador do alçapão. É só um cão morto, pensou ele. Recuou dois ou três metros, esticou a corda e puxou. O alçapão abriu-se. Jakob passou pela entrada da cave, agarrou na pá e começou a atirar neve para a abertura. Quando teve por fim a certeza de que o cadáver estava enterrado debaixo da neve, aproximou-se e olhou para baixo. Em seguida foi buscar a garrafa de lixívia, mas no preciso instante em que se preparava para desenroscar a tampa, reparou que o vizinho o observava da janela da sua cozinha. Por momentos ficou perplexo, como se tivesse sido apanhado em flagrante. Depois, com uma calma forçada e sem olhar na direcção da casa do vizinho, pegou na pá e na garrafa, guardou-as na garagem, trancou-a e voltou   a entrar em casa.
Erna não estava na cozinha. Jakob sentou-se e acendeu um cigarro. Martin?, pensou ele. Antes do grande nevão. Martin? Ouviu Erna a descer as escadas, vinda do piso de cima.
- Conseguiste tirá-lo? - perguntou ela.
- Não. O Holt estava à janela. Espero até que se faça noite.
- Não devias informar a polícia?
Ele não respondeu.
- Alguém deve ter dado por falta dele.
- Deixa-me resolver este assunto à minha maneira, por favor.
- Sim, mas alguém o fez. A nós.
- Isso não sabemos. Quem poderia ter sido?
- Bem, não sei quem poderia ter sido. Seja quem for, o que é certo é que não desceu para a cave por ele próprio. Oh, meu Deus!
- O que se passa?
- Imagina se...Oh, meu Deus, imagina se alguém o enterrou ali.
- Não fiques histérica.
- Não estou histérica. Mas não entendo porqe te negas a informar a polícia.
- Faço isto à minha maneira, já disse, e agora não se fala mais no assunto.
Levantou-se. Saiu da cozinha, atravessou a entrada e desceu até à cave. Tirou um velho oleado da prateleira que estava por cima do banco de carpinteiro e com a tesoura fez um buraco em cada canto. Depois cortou uma corda de cinco ou seis metros de comprimento em quatro partes iguais e atou-as aos buracos do oleado. Então aproximou-se da janela e olhou lá para fora. 
Começara a escurecer, daí a meia hora estaria suficientemente escuro. Ele viu-me, pensou, mas daquele ângulo era impossível ver o cão.
Pegou no oleado, subiu as escadas da cave e entrou na garagem. Sentou-se dentro do carro e acendeu um cigarro. Quando lhe pareceu que já estava bastante escuro, levou consigo a garrafa de lexívia até ao início das escadas que desciam para a cave. Não havia ninguém na janela da cozinha do vizinho. Deitou lixívia para cima da neve que cobria o corpo do cão e voltou à garagem para buscar a pá da neve e o oleado. Com a pá empurrou o cão até junto das escadas e depois abriu o oleado. Em seguida enfiou a pá por baixo do corpo do cão e virou-o para cima do oleado. O cão ficou descoberto, o fedor subiu-lhe à cara e Jakob desatou a jorrar vómito.
Mais tarde, depois de voltar a cobrir o cão com neve, soltou a corda de estender a roupa do puxador do alçapão e fez-lhe um laço. Não havia ninguém à janela da cozinha do vizinho. Começou a puxar a corda, e o oleado formou uma espécie de rede de pesca à volta do cão. Era mais leve do que ele pensava e o oleado aguentou. Arrastou-o pela neve até à cerca de madeira ao fundo do jardim, então pegou na pá e cobriu o corpo com meio metro de neve. Consegui, pensou ele.
Meia hora mais tarde, depois de tomar duche e escovar os dentes, entrou na sala. (...)

 Kjell Askildsen in Uma Vasta e Deserta Paisagem

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