21 janeiro 2012

Milan Kundera - A ignorância

"Jonas Hallgrimsson era um grande poeta romântico e também um grande combatente pela independência da Islândia. Toda a Europa das pequenas nações conhecia, no século XIX, estes poetas românticos e patriotas: Petofi na Hungria, Mickiewicz na Polónia, Preseren na Eslovénia, Macha na Boémia, Chevtchenko na Ucrânia, Wergeland na Noruega. Lonnrot na Finlandia e muitos mais. A Islândia era então uma colónia da Dinamarca e Hallgrimsson vivia os seus últimos anos na capital. Todos os grandes poetas românticos, além de serem grandes patriotas, eram grandes bebedores. Um dia, a morrer de bêbado, Hallgrimsson caiu numas escadas, partiu uma perna teve uma infecção, morreu e foi enterrado no cemitério de Copenhaga. Estava-se em 1845. Noventa e nove anos mais tarde, em 1944, foi proclamada a República Islandesa. A partir de então os acontecimentos acelararam a sua marcha. Em 1946, a alma do poeta visitou um rico industrial islandês durante o sono e abriu-se com ele: «Há cem anos que o meu esqueleto jaz no estrangeiro, no país inimigo. Não terá chegado o momento de regressar à sua Ítaca livre?»
Lisonjeado e exaltado por esta visita nocturna, o industrial patriota fez retirar o esqueleto do poeta da terra inimiga e trouxe-o para a Islândia, pensando em inumá-lo no belo vale onde o poeta nascera. Mas ninguém pôde deter a louca precipitação dos acontecimentos: na paisagem indizivelmente bela de Thingvellir (olugar sagrado onde, há mil anos, o primeiro parlamento islandês se reuniu a céu aberto), os ministros da novíssima República arrebataram o poeta ao industrial e enterraram-no no Panteão, que na altura só continha o túmulo de um outro grande poeta (as pequenas nações transbordam de grandes poetas), Einar Benediktsson.
Mas os acontecimentos voltaram a precipitar-se e em breve toda a gente descobriu aquilo que o industrial patriota não ousava confessar: especado diante da sepultura aberta em Copenhaga, sentira-se muito ncomodado: o poeta estava enterrado no meio dos pobres, na sua sepultura não havia qualquer nome escrito, só um número, e o industrial patriota, perante vários esqueletos entrelaçados uns aos outros, não soubera qual escolher. Na presença dos burocratas impacientes e severos do cemitério, não ousara mostrar as suas hesitações. Assim levara para a Islândia não o poeta islandês, mas um talhante dinamarquês.
Na Islândia começou por se querer manter secreto este engano lugubremente cómico, mas os acontecimentos continuaram a sua marcha acelarada e, em 1948, o indiscreto Halldor Laxness divulgou num romance a intriga oculta. Que fazer? Calar. O esqueleto de Hallgrimsson continua portanto a jazer a dois mil quilómetros da sua Ítaca, no país inimigo, enquanto o corpo do talhante dinamarquês, que sem ser poeta era também ele patriota, se encontra banido numa ilha glacial que nunca lhe suscitou senão medo e repulsa.
Ainda que mantida secreta, a verdade teve por resultado que não se enterrou mais ninguém no belo cemitério de Thingvellir que alberga apenas duas urnas, sendo por isso, de entre todos os panteões do mundo, esses grotescos museus de orgulho, o único capaz de nos tocar.
Há muito tempo, a sua mulher contara esta história a Josef; ele achava-a engraçada e dela parecia tirar-se facilmente uma moral: toda a gente se está nas tintas para o lugar onde se encontram os ossos de um morto».
Milan Kundera in A Ignorância

Sem comentários: