18 janeiro 2012

Clarice Lispector "A Cidade Sitiada"

"Não havia um gesto sequer que pudesse exprimir a nova realidade.
E, no meio dessa riqueza, estava Lucrécia Correia despenteada em robe de chambre, sem conseguir reinar sobre o tesouro, mal adivinhando até onde ía o magnífico porão. Perdera agora certos cuidados consigo, intensamente feliz, arrastando-se, espiando, tentando inventariar o novo mundo que Mateus provocara com o brilhante no dedo médio.
Parecia enfim não ter tempo para nada, como as pessoas.
O hotel onde  Mateus e Lucrécia se instalaram apresentava uma comodidade já fora de moda. Nenhum dos hóspedes porém o trocaria por outro mais moderno. Mesmo a decadência dos salões recordava-lhes o tempo de pobreza e fartura que se teve em família - e sobretudo «a outra cidade» de onde todos vieram.
No hall ornado de palmeiras os frisos das paredes já deixavam ver o fundo  podre da madeira, e as moscas na sala de jantar recuavam a grande cidade à época em que havia moscas. Embora, em poucos dias, parecesse à recém casada não ver há anos uma vaca ou um cavalo.
Foi nesse meio, favorável a um amadurecimento e a uma decomposição, que Mateus instalou régiamente Lucrécia Neves. Logo depois do primeiro almoço esta compreendia o anel do marido.
- Espero que você seja feliz aqui, disse-lhe este, e tinha o ar modesto de haver mostrado parte do seu carácter.
À Lucrécia, os restos de um fausto mal soterrado fascinaram tanto quanto o contínuo ruído daquela cidade.
Pois se em S. Geraldo os motores eram invisíveis, aqui haviam emergido, e não se sabia o que era motor e o que era coisa. Lucrécia passou a considerar-se o membro mais inexperiente da cidade, e deixava guiar-se pelo marido em visitas a «lugares», na esperança de em breve entender os táxis se cruzando entre gritos de jornaleiros e aquelas mulheres bem calçadas pulando por cima da lama.
Porque esta cidade, ao contrário de S. Gerardo parecia manifestar-se a todo o momento e as pessoas se manifestavam a todo o momento.
Mateus Correia levou-a ao Museu, ao Jardim Zoológico, ao Aquário Nacional. Era assim que ele persistia em lhe mostrar o próprio feitio: mostrando-lhe as coisas que vira; paciente esperando que aquela mulher se tornasse igual a ele.
Tudo esta entendeu com atenção, como se lhe ensinassem onde ficava o lugar de guardar vestidos, onde era o banheiro e onde se acendia a luz.
No Museu, de braços dados - viram máquinas antigas na sua evolução vagarosa até se tornarem esta coisa essencial: modernas. Tudo ela entendia, admirando o marido.
Mas no Aquário Nacional, por mais que procurasse não saberia que «coisa dele» Mateus vira. E cansada de percorrer a alma do esposo - que parecia se ter difundido por toda a cidade, mergulhando aqui apenas para reaparecer diferente e inconfundível em outra extremidade - já cansada e tomando afinal uma folga, olhou por sua conta: os peixes.
Várias vezes Mateus tentou puxá-la para ir embora. Mas ela, num indício da crueldade futura, manteve-se dura de pé. Com uma ponta de cólera via no aquário inserido na parede a superfície da água - de baixo para cima. De baixo para cima - via os peixes quase tocarem a tona e voltarem em doce rabada, e de novo investirem suaves, tentando com insone paciência ultrapassar a linha de água.
O único lugar onde podiam viver era-lhes a prisão. Foi isso o que ela viu, teimosa, comparando a água dos peixes com S. Gerado - e dando a primeira cotovelada em Mateus que insistia em saír."
Clarice Lispector in A Cidade Sitiada

Sem comentários: