08 maio 2011

A Ave

Ninguém sabia donde viera a estranha ave.
Talvez o último ciclone a arrebatasse
de incógnita ilha ou de algum golfo,
ou nascesse das algas gigantescas do mar;
ou caísse de uma outra atmosfera,
ou de outro mundo ou de outro mistério.
Velhos homens do mar nunca a haviam visto nos gelos
nem nunhum andarilho a encontrara jamais:
era antropormorfa como um anjo e silenciosa
como qualquer poeta.
Primeiro pairou na grande cúpula do templo
mas o pontífice tangeu-a de lá como se tange um
                                                       [demónio doente,
E na mesma noite pousou em cima do farol;
e o faroleiro tangeu-a: ela podia atrapalhar as naus.
Ninguém lhe ofereceu um pedaço de pão
ou um gesto suave onde se dependurasse.
E alguém disse:"essa avé é uma má das que
                                                       [devoram o gado".
E outro:"essa ave deve ser um demónio faminto".
E quando as suas asas pairavam espalmadas dando
                                                       [sombra às crianças cansadas,
até as mães jogavam pedras na misteriosa ave
                                                       [perseguida e inquieta.
Talvez houvesse fugido de qualquer pico silencioso
                                                       [entre as nuvens
ou perdesse a companheira abatida de seta.
A ave era antropormorfa como um anjo.
E solitária como qualquer poeta.
E parecia querer o convivio dos homens
que a enxotavam como se enxota um demónio doente.
Quando a enchente periódica afogou os trigais,
                                                       [alguém disse:
- A ave trouxe a enchente.
Quando a seca anual assolou os rebanhos, alguém disse:
- A ave comeu os cordeiros.
E todas as fontes lhe negando água,
a ave desabou sobre o mundo como um Sansão sem
                                                       [vida.
Então um simples pescador apanhou o cadáver
                                                       [macio e falou:
- Achei o corpo de uma grande ave mansa.
E alguém recordou que a ave levava ovos aos anacoretas.
Um mendigo falou que a ave o abrigara muitas vezes
                                                       [do frio.
E um nu: a ave cedeu as penas para meu gibão.
E o chefe do povo: era o rei das aves, que desconhecemos.
E o filho mais moço do chefe que era sozinho e manso:
- Dá-me as penas para eu escrever a minha vida
tão igual à da ave em que me vejo
mais do que me vejo em ti, meu pai.

Jorge de Lima in Melhores Poemas

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