02 julho 2015

Passagem Cuidadosa

No ténue perpassar de nuvens cuidadosas
como flores que abriram no silêncio das outras,
a mim próprio escuto, e os olhos com que vejo
são minha voz falando o tempo de passarem
mais outras nuvens, qual a vida ao sopro,
ao invisível sopro ou chama ou só altura
interiormente aberta ao espaço que a rodeia.

A mim próprio escuto, eu sei. Mas não de mim,
que alheño vivo a vida que em mim fala.
Como as nuvens que passam cada vez são outras,
a quanto escuto ignoro ou esqueço ou nem contemplo,
abertos olhos, meu destino além
de mim, de tudo, eu próprio sou porque
já fui e não serei, ou serei sempre mais
de meu destino a essência que lhe dou
na extrema contingência de tornar a ser..

As nuvens passam cuidadosamente.
Escuto-as ou me escuto? Vejo-as ou me vejo?
Um cicio brando, um murmurar, um fluido
e ténue perpassar de pétalas molhadas,
como flores que abriram no silêncio de outras.

Jorge de Sena in Antologia Poética

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